Fragmentos

..o que não deve ser esquecido.

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20131230

Expurgo Descritivo I

{expurgo descritivo imagem provisória}


Compartilhando daquela longa piteira ligada ao narguilé, também compartilhamos alguns pensamentos e visões.
O homem pálido e esguio, a face do romantismo lúgubre e sujo, que já havia fumado cigarros demais e bebido natashas demais, mal conseguia fixar em mim seu olhar, de escuras pálpebras semicerradas; olhos cansados de tudo o que viram - de dentro e de fora - em seus trinta e poucos anos.
Na sua frente, eu fui por algum tempo uma figura disforme, sem nome e sem sexo, apenas sorrindo, lascívia e desembaraço, efeito mais do que esperado depois de vários drinks de amoras e cerejas, e agora,  a marijuana queimando com absinto e perfumando o ambiente através do narguilé e de nossas narinas.
Ele falou muito de uma mulher azul, e eu me deixei absorver por sua narrativa. Em silêncio, eu o observava gesticular: ora de maneira lânguida, como se sofresse; ora de maneira brusca, como se tomado de um terror repentino.
Ele jogou a cabeça para trás e com a mão direita, tentou alcançar sua bolsa-carteiro onde estavam seus remédios. Olhei-o sério, com dúvida, ele não se recobrou. A biblioteca estava escura exceto por nossa pequena luminária, o que estávamos fazendo era arriscado. Era pra ser supostamente perigoso e arriscado, supostamente divertido. Mas agora ele parecia absorto na pior das bad-trips do mundo, lágrimas vazias no canto dos olhos, boca seca que murmurava um praguejo contra a mulher que o deixara. Eu traguei mais fundo, e deitei de bruços do lado dele, observando seus olhos de quem estava completamente destacado do corpo: pupilas dilatadas, formando um buraco-negro tão intenso que eu queria me jogar ali e ver o que ele estava vendo para dentro. Apoiei-me em seu peito e esperei alguma reação. Nada. Então eu me joguei, naqueles olhos de homem perdido.

"Rapaz, agora você foi longe demais... mas nunca o suficiente."

Lá naquele galpão escuro então eu a vi. Imponente em seu trono de prata estava uma mulher azul, com lindos cabelos negros bem lisos. De seus olhos, lágrimas tão prateadas como seu trono saíam. Apenas seus lábios e mamilos, muito vermelhos, se destacavam. Eu olhei ao redor e percebi que ela não podia me ver, ninguém poderia me ver. Havia um espetacular lustre sobre nossas cabeças, que de tão pesado, parecia que ia se espatifar a qualquer momento. Talvez fosse uma distração.
Então eu o vi se aproximar da mulher, magro e branco como frango congelado, usando apenas sua calça vermelha e algo que eu pude ver de uma cueca púrpura. Ele corria de braços abertos em direção à mulher, que parecia cada vez maior quanto mais perto ele chegava. Ele chorava e soluçava, enquanto um pó branco caía sobre seu rosto. A mulher azul mandara uma mariposa, e era essa mariposa  - tão gigante quanto a própria mulher agora - que espalhava tal qual um mórbido morfeu o pó branco no rosto do meu companheiro de biblioteca.
Ele continuava a chorar e soluçar, vermes saíam dos buracos nos seus braços. As feridas pareciam tão lívidas, e ela as possuía também. Ele queria abraçá-la, mas ela, apesar das lágrimas, não demonstrava nenhuma expressão.
Seu rosto era como de uma pérfida boneca, sem sorriso, a pele uniforme pareceu para mim como se espichada sobre os ossos, e coberta por uma penugem acetinada, como a pele das asas do morcego. Gostaria de ajudá-lo, pois pressentia que aqueles dentes afiados de prata o devorariam em seu desespero infantil. Apertei bem os olhos, desejando um sonho dentro do sonho, algo indefectível que pudesse tirá-lo dali. 
Quando ele já estava salpicado até a cintura de pó branco, a mariposa parou e voltou num voô lento até a boca da mulher azul, e ela a devorou - com dentes pontiagudos e afiados, de prata. Ela enfim abriu os braços, como se o aceitasse. E abriu também as pernas, como se o esperasse. A saia preta era longa, e não pude ver mais do que as pontas de seus perfeitos pés.

Eu comecei a correr, mas vi que não conseguiria interferir na bad-trip dele. Continuaria disforme, sem nome e sem sexo. E por isso eu comecei a manipular o sonho dentro do sonho. Uma maçã muito rubra caiu entre ele e a mulher-azul.  A maçã se espatifou no chão como uma bomba cheia de sangue, maculando de vermelho onde estava branco do pó, o que incluia o torso e o rosto do meu companheiro de biblioteca. Irada, a mulher azul parecia ter desistido de seu bebê puro, e olhava com ódio e desprezo para o que surgia da maçã.
Uma serpente que se tornou uma menina, de fato pura, com cabelos vermelhos, ondulados, era a menina-vermelha. O companheiro, como que desperto de um transe, para de chorar e fica olhando-a. Ela apenas sorri, seus olhos dourados brilhando como mil sóis; fascinado ele sorri de volta. A mulher azul fecha as pernas e os braços, mostra para a menina seus pulsos cheios de veias frias e fecha também o semblante, exibe suas presas de aço.
A menina apenas exibe um sorriso brilhante como pérolas, enquanto o homem mistura em sua pele o pó branco e o sangue rubro; ele se torna a figura disforme no tempo-espaço, apenas seus cabelos escuros não estão uma completa bagunça do seja-lá-o-que-for.
A mulher-azul avança contra a menina-vermelha, e é capaz de ferí-la com suas garras mesmo sem tocá-la. O homem avança contra a fria mãe branca-de-neve, mas esta o empurra, rejeição.
A pele arrancada do peito da menina mostra que seu sangue é pura lava. Ela pega fogo, iluminando a minha visão. Sua boca se abriu numa gargalhada de escárnio e eu pude ver que sua língua brilhava como a lua. O homem está confuso.
A menina então reage, sabendo que a mulher lutaria com todas suas forças para proteger seu precioso bebê-homem. Ela avança como uma revoada de corvos, com sua saia negra bruxuleante como a fumaça do narguilé. A menina, esguia e elegante como um felino, se esquivou com um brilho elétrico de curto-circuito. E voltou seus olhos para as petrificante oculares da mãe-gelada. O homem se aproximava do trono, enfim. Lá ele sentou, para desespero da mulher azul, e pôs-se a assistir as duas. Ele regozijava um êxtase sobrenatural, parecia completamente mudado, e capaz de me perceber na sala recém-iluminada.
A mulher azul é como um pântano, e a menina é como uma praia deserta; paraíso perdido e paraíso inexplorado; há uma conexão entre as duas chamada manguezal - que eu acredito, é o homem. Ele não sorria mas também já não chorava inconsolável. A mulher azul, aço inoxidável, queria apenas conseguir agredir a menina leve. Escuridão total, e quando a cena volta iluminada, a mulher azul está de volta ao seu trono, com o homem no colo, como se o amamentasse, ao mesmo tempo que limpava seu corpo com algo branco e pegajoso.
A menina então começa a devorar se próprio corpo, com sua língua de lua, e se transforma em outra coisa; maior, melhor e mais rápida. Cresce e vira uma garota, uma moça vermelha. Seus cabelos são como uma cascata de sangue, e ela se move como a chama da vela.  Lentamente se infiltrando na cena que se derrete à sua frente, onde proteção e lascívia se misturam, e a mãe de gelo parece triunfante.
O homem em seus braços faz da visão uma adaptação risível da Pietá, substituindo com licensa poética, os diademas em sua cabeça por chagas em seus braços.

A mulher azul ignora a intrusa; em seus domínios sonhares ela é a rainha soberana. O homem rapaz semicerrando suas pálpebras escuras, agarrava-se aos enormes seios como se precisasse daquilo para sobreviver. A moça não sentia fúria nem inveja, apenas observava a cena, esquadrinhando a mulher azul como um felino faz, espreitando sua presa. Para mim, o tempo parecia fixo, nada mais se movia - como se o tempo andasse para trás. Ninguém me percebia ali.
O homem, sem se cansar de sugar e sugar o seio já seco, finalmente abriu seus olhos e encarou a moça. Como se despertasse de um transe, a mulher fria arregalou seus olhos e eriçou-se como faria uma harpia,  seu sorriso maternal tornou-se uma careta de desgosto, como uma terrível máscara de kabuki.

O homem é largado no chão com total desprezo. Ele ameaça voltar a chorar, sua pele pegajosa parecia se transformar - ou desprender-se de seu corpo, tal qual réptil que troca de pele.
Mais uma vez a revoada de corvos avança barulhenta sobre a moça, que nem se move. Mesmo ferida, continua a esquadrinhar o inimigo.  Ainda na forma de corvos a rainha-azul tenta atacar seus olhos, para devorá-los; instinto natural do corvo. A moça, velocidade dobrada de curto-circuito alcança o pescoço de um dos corvos e o esgana, impedindo-o de cegá-la.  A mulher azul, engasgando, torna à sua forma e tamanho naturais.

O homem levanta-se, prevendo que ali seria um coliseu de arquétipos onde apenas uma figura saíria com vida, para fixar-se em sua mente torpe e talvez juntar os pedaços. Como quem toma o controle, senta-se novamente no trono e finalmente ele me encara e dá um leve sorriso; vê-lo sorrir é algo raríssimo. As luzes voltam a diminuir, o espetáculo seria melhor observado assim. Estou assistindo, mas o olhar dele me paraliza. 

Ao contrário do que esperávamos, a moça escarlate não atacou violentamente a mulher azul. Ela juntou os seios da outra com as mãos, enquanto tentava beijá-la e acariciá-la cheia de lascívia. A mulher, no entanto, parecia em dúvida se aproveitava a proximidade para liquidar sua oponente ou se entregava-se de vez aos prazeres indizíveis. Sua boa entreabriu para receber o beijo e suas presas prateadas brilharam novamente, como uma fileira de pequenos bisturis. Certamente serraria num piscar os lábios da moça, que continua a investir, cada vez mais ativa, como se tivesse mais braços. O homem se excitava no trono, massageando o falo já ereto em suas mãos. Tive de admitir que assistí-lo me excitava também. 

 As garotas, à medida que se entregavam também se feriam, entre beijos e arranhões, garras e dentes afiados, a pele fina rasgava-se com facilidade. A cena era tão intensamente erótica e ao mesmo tempo tão macabra (comecei a me perguntar qual era essa capacidade de a mente humana em unir extremos, e ainda assim parecer algo agradável  - ou seria apenas terrível?). O novo imperador perverso parecia divertir-se.
Tomando para si o controle da visão, o homem podia tentar conciliar seus arquétipos e demônios, o coliseu tornava-se palco de uma tragédia erótica, apenas os corrompidos compreenderiam, que o lustre seria uma distração para a dor.

Ele finalmente alcançava seus dez segundos de deus, desconexão e prazer maximizados, e os espasmos e gemidos que se tornavam uma sinfonia com os gritos das duas figuras femininas que também terminavam de se consumir e consumar na sua frente. Seu sorriso de êxtase absoluto era fascinante, enquanto ele se movimentava ainda rápido. O lustre piscava com a intensidade de seus gemidos, acendende-se enfim;  revelando que, ao redor da cena, era como uma gigantesca biblioteca. Limpo e novo, sem chagas no braço, lábios lívidos e ao redor de seus olhos estava ainda mais escuro. As duas, fundidas numa única figura siamesa, pareciam querer devorá-lo.  Afiada como uma navalha, a língua da mulher passeava no pulso do homem. Ele abre os braços, diz: "Estou aqui, tomai todos e comei, este é o meu corpo, e sangue, e espírito.. e não existe antídoto para o que me envenena,  e certamente as envenenará."

Nada mais importava. "Sem limite, sem razão." Eu já estava querendo sair daquela bad-trip que nem era minha, por quê eu fui me deixar levar? Que arrependimento terrível de cair na armadilha do paraíso do vampiro, que fantasiava com passado e futuro trepando e se mutilando diante de seus olhos? "Sem limite, sem querer. Nós estamos dentro de você".
Ouço um estalar de correntes se partindo e o farfalhar dos cristais do lustre, cujo centro se assemelha à um pentagrama, tal mencionada 'estrela de fogo'. Está caindo, está caindo. Eles nem se movem. Inevitável para mim olhar para cima, sentindo um misto de terror e fascínio; as facas e gotas de vidro transparente preparando-se para o gran-finale daquela cena, que acabaria em pedaços como um espelho espatifado, e todos nós nos tornaríamos parte do mesmo perturbador quadro. Eu me ajoelho sabendo que não há oração para quem fracassa, o outro ajoelhado sucubindo ao máximo tesão. Não hesite. Os vidros e os ferros cortavam o ar de maneira musical, como os gemidos de outrora. Estrondo, e nada mais importa. 
Que belo é o som das ferragens se chocando contra o chão de pedra! Magníficas cores do vidro rasgando as carnes, perfurando os corpos em descontrole pelo orgasmo! Os ossos brancos em fratura exposta, os lábios que ainda se tocam,as mãos antes em carícias, agora despedaçadas.. uma pintura surreal. Não hesite, seu desejo foi esmagado pelo medo, que foi devorado por sua volúpia. Sua esperança foi fragmentada e seus arquétipos, coagulados numa coisa só, juntamente com você. Não hesite, abra os olhos.

***
De volta à biblioteca em penumbra, eu acordo, como sempre de supetão, como quem toma um susto. Sede, procuro pela garrafa de vinho. O narguilé aparentemente apagou-se sozinho. Meu amigo não mais está deitado do meu lado.  Ora, eu adormeci? Então eu ouço passos e vejo-o vestindo sua camisa preta. Usa as calças vermelhas.  Ele faz um sinal com a cabeça como se fosse hora de partir, e antes que eu pudesse protestar contra, ele mostra outra bela garrafa de pérgola, e uns livros de capa bem envelhecida. Levanto e sigo-o, levando a lamparina e o narguilé. Permaneço sem face, sem nome, sem sexo. Se eu o olho de baixo, é o próprio deus. Se eu o olho por cima, é o demônio. Mas se olho em seus olhos...


Nenhum vestígio de nós foi encontrado.

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