Fragmentos

..o que não deve ser esquecido.

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20131124

Anatomia Reversa - relato 1

Fortunadx é aquelx que saúda a Morte como uma velha amiga.
Eu ainda me lembro do buraco no fundo do quintal.
Disseram que ela morrera de pneumonia. Houve uma outra que falecera pouco antes desta, morrera de infestação por vermes. Ambas eram brancas.

A que teve infestação de vermes, G., teve uma morte envolta em mistério. 
G. vivia tendo filhos, todos morriam com poucos dias de nascido. O companheiro batia-lhe muito, indiferente.  Ele tinha muitas outras amantes, G. permanecia dócil e submissa, comendo do chão os restos de comida.
B. sempre corria atrás dela, de brincadeira, mas G. nutria por ela nada mais que um inexplicável pavor. Corria e se escondia, até o dia em que adoeceu. G. ficava prostrada no chão, como se dormisse porém com os olhos abertos. E resmungava. Acho que começou com uma infecção anal, devido à violência e maus-hábitos do companheiro, um machista dominante nojento. Em seus últimos dias, G. cavou um buraco raso no fundo do quintal, e lá ficou, deixando os vermes infestarem onde era infecção e se tornou necrose. Não comia nem bebia água já há muitos dias, apenas rezava num ritmo de mau-agouro, dia e noite, em transe. Os vermes devoraram desde o ânus as suas entranhas, em poucos dias.

A que teve pneumonia, B., passou seus últimos dias prostrada, acorrentada. Tinha comida e água. Gostava quando eu podia desacorrentá-la, sair com ela.. às vezes acho que foram os banhos frios.
Diziam que ela foi acorrentada por ter uma conduta sempre repreensível, era arruaceira e descontrolada, e alguns diziam até que ela tinha alguma demência. Marcada para viver pouco, sua alegria era ver-se livre das correntes. Banho gelado, sol quente, água fresca e comida razoável. Seus cabelos viviam encardidos. Agressiva e impulsiva, conservava uma doçura infantil no olhar e na comunicação verbal. Sua agressividade era instintiva, não era perversa ou planejada para ferir. Tinha amizade fácil com todos os outros detentos,  afinal. Toda quinta corria desvairadamente pelas ruas do bairro, até ficar sem fôlego, sem temer um atropelamento.

No dia que ela morreu, me contaram logo no café da manhã, antes de eu ir pra escola. Eu era pequena. "Posso ver?" "Já enterramos." Tudo bem, eu só lamento.
Na escola, não entenderam meu luto e eu fiz um desenho da defunta, bem mortinha, e atrás, uma carta pra deus: "um banho bem quentinho e biscoitos no leite".

Anos mais tarde, eu encontrei a ossada.  A terra esfarelava na minhas mãos, do crânio descoberto, ainda relativamente preso à coluna vertebral e os demais ossos estavam bem conservados. Da outra defunta, não havia sobrado nada, nenhum vestígio, acho que os vermes devoraram tudo mesmo.
Meus olhos enormes, âmbar, esquadrinhavam cada detalhe: as órbitas vazias, os dentes conservados, os buracos da narina. Senti a textura do osso, duro, e os demais, porosos e firmes ao mesmo tempo. Medo e fascínio mistos ao segurar o crânio nas mãos, tal qual um ritual. Era como se eu encarasse a própria morte. Quando pensei isso, e vi uma traiçoeira aranha adiante, quis soltar o cranio; mas ao contrário, o medo se foi. Dei um beijinho na testa, decorei com flores e tornei a enterrá-lo, agora em digna cova mais funda.

[texto escrito em 20 de novembro de 2013, na sala de espera da clínica]

{aos curiosos: a Sra. G. era uma galinha. a Srta. B. era uma cadela.}

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