Fragmentos

..o que não deve ser esquecido.

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20140811

Devaneios de Amorexia I - Ossos Brancos

"Eu conheço você de algum outro lugar? Por que sempre me abandona, querendo mais?"

E aquela mania dele, cruel, de aparecer nos sonhos dela?
Inconforme.
Descumprimento, desleal.
Responsabilidade desequilibrada.

Kathy Core estava no velho empório, como quem procurava um vinho em especial.
Desceu a escada em espiral para a adega e esperou. Olhou no telefone. Esperou.
Kevin entrou no empório, com sua reconhecível jaqueta marrom. Lhe caía bem, por alguma razão, apesar de quase fundir em sua pele cor de canela.
Ele foi para o fundo da loja, olhou pela janela e esperou.
Tirou um bilhete todo amassado do bolso, algo escrito com caneta nanquim com uma caligrafia feia de doer: a letra rabiscada de Kathy. Por que ele ainda tomava aquele pedaço de papel? Olhou para fora e esperou. 

Era tarde, depois daquela metade de tarde, onde todo plano começa a morrer. 
Na mochila, coisas de piquenique. Faltava pois, só o vinho. Desceu a escada espiral para a adega, enfim, ficando cada vez mais escuro, Encontrou Kathy de costas, seus cabelos fundindo com a penumbra carmim das garrafas de vinho.
"Kevin" - ela sussurrou - "Você veio, enfim."
"Eu precisava te encontrar. Vire um pouco seu rosto, dê um sorriso pra mim". - ele falou, baixo e rapidamente para que ela não pudesse mesmo entender.
"Você tem cheiro de cigarros"- ela não se virou.
Ele não respondeu, mas pensou "é aquele que você gostava".
Ela se virou, e abraçou-o, aspirando sue perfume, acreditando que seria a última vez. Mas todas as outras vezes foram as últimas, mas todo momento é perto do fim. A qualquer momento pode ser o fim, e adeus.
Ele se deixou ser abraçado, e a abraçou de volta, também aspirando o perfume dos cabelos dela, como fez da primeira vez, pois depois de tantos "fins", sempre parecia ser a primeira vez. A qualquer momento poderia ser o fim definitivo, e adeus.

Seus olhos se cruzaram e ela pensou em beijá-lo, mas logo essa imagem foi substituída por um alerta mental: "se eu fizer isso, vai acabar".
Subiram as escadas com os dedos semi-entrelaçados, mas antes que pudessem deixar o empório, avistaram um conhecido, o Professor, do outro lado da rua, e tornaram a se esconder atrás da prateleira. Kevin soltou-se e em dois minutos saiu e atravessou; parou o professor e contou algo em tom de urgência. Kathy nada ouvia, mas percebeu que eles discutiam, sem alterar o tom de voz.  Por fim Kevin voltou pra dentro, fez um gesto de silêncio, e dois minutos depois eles saíram, separados, como se tivessem se encontrado por acaso.
Kevin acendeu um cigarro, Kathy pediu um único trago, ele lhe entregou o maço e a ofereceu. Ela disse que não havia necessidade, se era pra evitar contágio, que ela ficava longe. Ele pegou o próprio cigarro e segurou para que ela pudesse tragar. Uma, duas. Depois disso, ela mascou um chiclete.
Caminharam para o parque em absoluto silêncio, lado a lado, mas sem nunca se tocarem. O que fora aquele lapso, onde seus dedos se entrelaçaram por um momento? Ás vezes o rosto dele se ocultava na fumaça. Assim eram os sentimentos dela por ele, naquele momento.

Chegaram ao parque e escolheram aquela mesma árvore mais oculta, de outrora, para fazerem o piquenique, da mesma maneira. Ali seria difícil vê-los, sob a sombra das árvores, onde parecia ser mais verde e azul e escuro, do que nas outras áreas do parque. Ainda assim era possível ver o céu. Um pedaço de promessa por entre as nuvens cinzentas.
Não tinha nada de mais, a toalha de piquenique era a mesma da outra ocasião, tinha um pacote de doritos, dois pedaços de bolo e o vinho que ela comprara. Kevin se sentou encostando na árvore e fez com que Kathy se sentasse entre as pernas dele, recostado em seu peito. Parecia que nada havia mudado. O vinho foi servido em copos diferentes. O silêncio permanecia inquebrável. Parecia mais uma cerimônia do chá, todo o diálogo se dava através de gestos e olhares, toques sutis. Ela segurava a mão de Kevin como se pedisse desesperadamente para que ele ficasse. Ele a abraçava como se esperasse desesperadamente que ela compreendesse. "Não desapareça. Não desapareça..."

"Última vez, né..?" - ela finalmente quebrou o silêncio, quando o vinho acabou, já com uma voz meio chorosa.
Kevin não respondeu, apenas a abraçou para si, mais forte, de maneira que só o silêncio das árvores que testemunharam o que aqueles corações gritavam, poderia selar. Ele a abraçou como da última vez. Ele a abraçou acreditando que seria pela última vez.
Ele acariciou os cabelos dela, e Kathy virou-se de frente. Eles deveriam se beijar? O dia ficara tão nublado, e então começou a chover. Ele pegou a toalha e jogou sobre a cabeça de ambos, como uma espécie  de tenda.
"Preciso te contar um segredo, Kathy. Mas aqui, eu não consigo. Agora eu não posso. Precisamos nos encontrar, fora daqui, e eu te conto."
"Kevin..?" - Como outrora, ela se pegava olhando pra ele, sem entender coisa alguma. 
Ele segurou o rosto dela com as duas mãos, e ela segurou-lhe pelos pulsos. Não sabia se deveria impedi-lo ou encorajá-lo.

Ele fechou os olhos e chorou, baixo, envergonhado, como quem reprimiu aquele choro à algum tempo. Então Kevin finalmente falou:
"Vou enterrar você. Eu vou te enterrar viva, para que você não desapareça. Eu sei que isso é doentio, mas eu preciso fazer isso. Vou te ver todos os dias, e você nunca vai desaparecer. E aí quando eu puder, eu te conto o segredo. Eu prometo, que vou te ver todos os dias..."

Kathy sentiu um pavor tremendo, e ao mesmo tempo, que sua devoção estava sendo testada. Kevin iria enterrá-la viva, para que ele pudesse vê-la todos os dias. Mas por que, por quê ela aceitaria algo doentio assim? Ele tornou a ficar em silêncio e muito sério e engolia suas lágrimas. Ela tentava enxugar suas lágrimas, mas ele desviava o rosto.
"Não enxuguei nenhuma das suas lágrimas" - ele disse, rispidamente.
Eles saíram de onde estavam pois a chuva intensificou-se, e se esconderam atrás do almoxarifado do parque. 

O telefone dele toca, é ela: Deirdret. Ele atende, mudando a voz: "Oi, amor."
Kathy desvia o olhar. Depois daquilo, ia querer um cigarro inteiro com certeza. A chuva não para de aumentar, e ela agradece por estar abafando o som. Ela se deixa dissolver naquele som. Kevin a enterraria onde? Debaixo daquela chuva? Antes ou depois de se encontrar com Deirdret? Que patético. Ninguém ali consegue se decidir.

Então Kathy se lembra de um sonho que teve: Frank enterrava Alice morta debaixo de sua cama, e o espírito da garota assombrava o cara-coelho todas as noites. Ele se deixava ser assombrado, apesar do sofrimento e horror, porque amava Alice demais para deixar que o corpo dela perecesse no cemitério. Sádico, Frank. Sua percepção de amor é doentia.~*

O telefone foi de fato desligado. Kevin se voltou para Kathy, pediu desculpas em voz baixa e ofereceu um cigarro. Ela recusou. Ele acendeu. Ficaram sem se olhar e em silêncio até que o cigarro dele acabou. Antes que ele pudesse jogar a guimba no chão, Kathy adiantou-se segurando o braço dele. Depois segurou o outro. Ele tirou os braços e a olhava fixamente, com medo do que ela pudesse fazer. Kathy entrelaçou os dedos nos cabelos dele, fazendo-o fechar os olhos de deleite. Depois beijou-lhe a testa, e, na chuva, partiu.

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Dias depois, Kevin acorda abraçado à uma ossada de garota, ossos muito brancos e limpos, e chorando como se fosse o primeiro adeus definitivo.

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