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O trabalho dignifica o quê mesmo? |
Corte de gastos
Saiu do trabalho pela última vez, leve como a própria folha do contra-cheque. Olhou para o portão branco na parede verde-lima, fez uma careta. Ainda sentia o aroma do café sendo feito na cantina. Suspirou e empurrou os óculos; o uso deste foi causado pelo sem-fim de horas desregradas na frente do computador, à trabalho ou à lazer. O dinheiro do mês que vem, como iria fazer? Não se sabe. Os tênis tão gastos bateriam de porta em porta, o sorriso com sabor de fase nova não se apagaria facilmente. Era preciso economizar. Esperança enche o peito, mas ela só não enche barriga, afinal. Afinal, ainda tinha os dois gatos, e o par de tênis que em pouco tempo seriam mais buraco do que solado, mais memória do que calçado.
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Qualquer semelhança é mera coincidência. |
Cabelos vermelhos, fronte tão branca. Tatuagem de gato nas costas, camisa do Beatles. Ela abre um sorriso tímido, close no sorriso. A outra sorri e bebe vinho. Morena-latina, olhos fortes, cabelos escuros. Uma terceira, com a câmera na mão, tenta enquadrar as três na tela. As duas primeiras se beijam. O flash dispara, a fotógrafa fica de fora. Chove, chora não. Gostamos de você, bebe vinho. Amigas para sempre, enquanto essa garrafa durar. Hein, amigas para sempre, gostamos de você assim, cante aquela canção. Amigas, jeans. A que tem cabelos cor de palha se afasta, atira a câmera na água. De longe, ela finge que volta, mas está na verdade, se afastando.
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As guerreira fica, as comédia sai. |
Seu cabelo tá lindo, pretão.
Tá volumoso, cheião..
Acho não. Combina com você.
Pareço leão, é isso?
Não começa, [risos] você sabe que é linda.
Pára, vindo de você não conta. Eu precisava mudar né?
Novos ares, pensa nisso. É bom começar coisas novas depois...
Depois de um fim, né? Eu vou cortar também.
Do jeito que ela queria..?
Vou tentar evitar aquele corte.
Sei bem. Usa uma presilha assim, já fica diferente.
Vou devolver sua blusa.
Não esquenta, eu não usava ela mesmo.
Fica bom assim??
De lado? Ora, porque não?
..precisava falar isso, assim?
É, acho que ninguém aqui precisava, né? [risos]
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Oui! Oui! Oui! Oui! Oui! |
Corte de cabeças
A rainha, enfia a cabeça na guilhotina.
Lambe o fio da lamina, geme, vira os olhos.
É o cheiro da pequena morte que se aproxima.
É uma fantasia.
Viva esse brioche cremoso!
O suficiente pra perder a cabeça.
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Nem a esperança chegou aqui, quem dirá a fé. |
Corte de energia
Teve apagão, mas foi na rua toda, foi na minha cabeça.
Nem doeu, agora eu só não me mexo mais.
Tem alguma coisa em cima de mim, e um cheiro ocre de ferro, como uma fumaça enferrujada.
Minha boca tem gosto de sangue, tem terra entrando no meu nariz.
Não consigo me mexer mais. Estou com sono. cansaço.
Antes do apagão, houve uma explosão. Num país em guerra, a morte ás vezes é a paz menos cruel que há.
Vou dormir. Vão haver moscas no meu corpo antes que a luz volte.
Vão haver outros corpos sobre o meu antes que eu acorde.
Corte de coração
Um fragmento, só, não precisa de continuação. É a essência que conecta as pessoas.
Quando eu te leio e releio, tento te decifrar. É na escrita alienada, que se lê o que a boca não fala.
Não vou dizer um clichê agora, não há mensagem subliminar.
Apenas, por favor, apenas continue a escrever.
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Corte e costura
Roupa, cirurgia e trânsito.
Muda, trás e leva, corre, movimenta.
Tira, põe, troca, acelera, vai.
Reduz, volta, aumenta, complica.
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